segunda-feira, setembro 21, 2009

O porquê das diferenças...



Uma análise histórica do porquê somos tão mais pobres (e certamente menos livres) que os norte-americanos...

"EM 500 ANOS, OS EUA SALTARAM À FRENTE DA AMÉRICA LATINA AO CONJUGAR CAPITALISMO E DEMOCRACIA. NO MUNDO PÓS-CRISE, COMEÇA A FICAR CLARO QUE ESSE BINÔMIO SE CONSTRÓI MAIS NA POLÍTICA, COM INSTITUIÇÕES SÓLIDAS E PERENES, DO QUE NO MERCADO."

Durante sua primeira e única visita aos Estados Unidos, entre abril e julho de 1876, o imperador dom Pedro II registrou em seu diário um feito que lhe chamou a atenção: o trem que ligava Nova York a São Francisco completara o percurso "em 84 horas e 26 minutos". Três dias e meio, apenas. No Brasil de 1876, a estrada de ferro mais movimentada, cuja extensão era uma fração da ferrovia americana, fazia a ligação entre as plantações de café e os portos do Rio de Janeiro e Santos. Uma equivalente a Nova York-São Francisco no Brasil deveria ligar Porto Alegre a Fortaleza – e ainda faltaria chão. Por que os Estados Unidos, que então comemoravam o primeiro centenário de sua independência, já tinham trens rasgando o país do Atlântico ao Pacífico, enquanto no Brasil a maioria das viagens era mesmo feita em lombo de mula? A questão que se apresentou ao imperador estava no seu nascedouro e, de lá para cá, ficou ainda mais pertinente e intrigante: por que os Estados Unidos, que largaram atrás de tantos países da América Latina, inclusive do Brasil, conseguiram tamanho sucesso, enquanto a maioria da população da América Latina só agora começa a experimentar a vida em padrões pouco acima da linha de pobreza? Por que o "grande irmão do norte" se notabilizou por dois séculos de estabilidade política e social, enquanto os países ao sul do Rio Grande tiveram sua história entrecortada por golpes de estado e experimentalismos econômicos, resultando em um nível de desigualdade obsceno que só rivaliza com o da África?

-----Quem der as respostas definitivas terá achado o Santo Graal do progresso material e social. Enquanto isso não acontece, as explicações para o fosso vão ficando cada vez mais refinadas. Uma delas aparecerá no próximo livro do economista Bruce Scott, da Universidade Harvard, a ser lançado em novembro pela editora Springer-Verlag, de Heidelberg, na Alemanha. Scott mostra que, enquanto nos Estados Unidos se deu o surgimento simultâneo da democracia e do capitalismo, a América Latina teve relação conflituosa com esses conceitos, nunca corretamente entendidos por seus líderes.

-----"A América Latina sofre de falta de capitalismo, e não de capital", diz ele. O economista afirma que o capital, nacional ou estrangeiro, só ruma para um país quando se sente protegido por um conjunto de instituições. É por essa razão, completa ele, que não funcionou o que parecia ser a bala mágica contra a miséria na região, a famosa proposta do peruano Hernando de Soto, apresentada no livro O Mistério do Capital. De Soto dizia que a regularização dos lotes e casebres das camadas mais pobres da população permitiria seu uso como garantia de empréstimos bancários e despejaria bilhões de dólares na economia formal. Não foi o que aconteceu nos países onde a experiência de De Soto foi tentada. O que deu errado? A precariedade institucional. Sem garantias explícitas de, em caso de calote, recuperarem o empréstimo concedido ou o imóvel financiado, os bancos não entraram na dança. Mais desanimador ainda para eles era recorrer à Justiça. As sentenças demoravam, na melhor das hipóteses, oito meses e, na pior, oito anos. Ou seja, sem regras o capitalismo não existe.

-----"A recuperação do valor de um bem é, em última instância, um teste sobre a saúde das instituições capitalistas", diz Scott. "E essas instituições formam um sistema de economia política, não apenas de mercado." Eis uma novidade, sobretudo vinda de um economista: quando se trata de promover desenvolvimento capitalista, a política é superior ao mercado. É na política que se definem as regras do jogo, cabendo ao mercado atuar dentro dessa moldura. Quanto mais democrático for o regime, mais chance terá de criar instituições saudáveis. Com a crise financeira mundial deixando patente a necessidade de mais regulação do que preconizava a era Reagan, parece óbvio afirmar que a política tem um papel a cumprir, mas nem sempre foi assim. O mercado, dizia-se, trazia em si mesmo os germes do seu próprio aperfeiçoamento. A abordagem de Scott inspira-se na corrente mais em voga para explicar o fosso econômico que separa o norte e o sul das Américas: a tese institucional (veja o quadro). Capitaneado por teóricos como Douglass North e Ronald Coase, o novo institucionalismo sustenta que as regras e normas, econômicas e políticas, formais e informais, estão na base do desenvolvimento de uma sociedade. Nos Estados Unidos, desde os primórdios da colonização inglesa, as instituições, que são resultado de negociações políticas, protegem a propriedade privada, zelam pelo respeito aos contratos e leis, garantem o funcionamento impessoal da Justiça, estimulam a prestação de serviços públicos, como hospitais e escolas, para a maioria da coletividade, e não apenas para uma elite.

-----No começo da colonização, a América Latina era mais rica e tinha sociedades mais complexas que a América do Norte. O Brasil, com terra e clima promissores, já tinha vida comercial, com o pau-brasil e depois com o açúcar, mercadoria altamente valorizada na época, enquanto as tentativas de colonização nos Estados Unidos eram um fracasso atrás do outro. Nos primeiros 250 anos da colonização europeia, a América ibérica teve alguma vantagem sobre a América inglesa. Nos 250 anos seguintes, período em que as colônias viraram países independentes e republicanos, o jogo inverteu-se brutalmente. A renda per capita dos americanos e canadenses disparou. De acordo com as contas do cientista político Francis Fukuyama, o ex-ícone do conservadorismo americano e editor de Falling Behind, que trata do desnível entre as Américas, o calendário do fosso foi o seguinte.

-----• Até cerca de 1800, o norte e o sul das Américas evoluíram de modo mais ou menos semelhante.

-----• De 1820 a 1870, período que concentrou as guerras de independência, a América Latina encolheu 0,5% ao ano. Os Estados Unidos cresceram 1,39% ao ano.

-----• De 1870 a 1970, com uma interrupção durante a depressão dos anos 30, a América Latina cresceu até mais do que os Estados Unidos, mas num ritmo longe de cobrir a diferença.

-----• De 1970 até agora, os Estados Unidos voltaram a crescer mais que os vizinhos do sul, aprofundando o fosso.

-----• Em 2001, a renda per capita americana superava 27.000 dólares. A latino-americana não chegava a 6.000 dólares.

-----O Brasil avançou em muitos aspectos, mas ainda é "a eterna promessa de futuro", ora como celeiro do mundo, ora como potência verde, ora com etanol, ora com pré-sal, mas sempre o país em busca de cumprir o vaticínio da aurora redentora. O México progrediu, recuou e voltou a progredir, e ainda duela para superar a frase imortal de Porfírio Diaz: "Pobre México, tão perto dos EUA e tão longe de Deus". A Argentina fez pior. Já tendo sido mais rica que a Suíça, andou para trás. Buenos Aires, cuja prosperidade pregressa deixou rastro nas avenidas e cafés, nos teatros e na onipresença da arquitetura neoclássica, transformou-se melancolicamente no que o escritor André Malraux chamou de "capital de um império que nunca existiu". No início do século XIX, com a dianteira americana se alargando, atribuiu-se o atraso latino-americano ao trauma da conquista colonial, brutal e sangrenta. Em seguida, apareceu a tese da inferioridade cultural e religiosa dos ibéricos católicos em relação aos anglo-saxões protestantes, o que não levava em conta o contraste entre o sul e o norte dos Estados Unidos. Do início do século XX em diante, a esquerda dizia que o atraso era produto do imperialismo americano, e não atentava para o Canadá, que, ilhado pelo império, se a tese estivesse certa, não deveria então ser a potência que já era e segue sendo.

-----Com a peculiaridade de ser a única ex-colônia portuguesa e a única monarquia depois da independência, o Brasil deu origem a teses também peculiares. Quando o conceito de raça ainda era tido como verdade científica, dizia-se que os Estados Unidos haviam saltado à frente porque eram hegemonicamente brancos. O Brasil era atrasado porque era mestiço. (Do Canadá à Patagônia, o Brasil é o país onde se deu a maior diversidade étnica das Américas). Nos anos 30, ainda que muitos não entendessem, a mitologia racial foi pulverizada pelo clássico Casa-Grande & Senzala, do sociólogo Gilberto Freyre, que resgatou o valor do negro na formação brasileira e abriu uma perspectiva de análise mais ampla – cultural, social, histórica. Em 1954, com Bandeirantes e Pioneiros, o escritor Vianna Moog dissecou a natureza da colonização, mostrando que os pioneiros da colônia inglesa desenvolveram um sentimento de pertencimento à nova terra devido às suas atividades produtivas, enquanto os bandeirantes viviam interessados no extrativismo mineral, que era um convite ao desenraizamento. Não há nas Américas dois países tão parecidos como Brasil e Estados Unidos, ambos terra de índios dizimados e gigantes continentais que apostaram na agricultura e na escravidão. Mas, por trás das semelhanças, existem diferenças cruciais.

-----No Brasil, os portugueses, depois de séculos sob a mística da poligamia moura, eram mais disponíveis aos impulsos dionisíacos diante da beleza das índias e das negras. Nos Estados Unidos, os ingleses, puritanos caucasianos, não. Para os portugueses, a mulher era alvo e presa, e até padre católico se esgueirava nas sombras por um chamego de negra. Para os ingleses, a mulher era uma companheira e braço para o trabalho. Os portugueses chegaram sozinhos, sem mulher nem filhos, movidos pelo desejo de enriquecer e voltar à pátria-mãe, vitoriosos. Os ingleses, não. Vieram com família, dispostos a criar uma nova vida na nova terra. Nas pinturas que retratam as primeiras horas do Brasil e dos Estados Unidos, só no norte aparecem mães embalando berços. Os ingleses queriam fundar sua pátria calvinista. Os portugueses estavam em busca do Eldorado. Os ingleses eram colonizadores. Os portugueses, conquistadores. Longe da família, já com a cobiça pela riqueza tomando o lugar antes ocupado pela reverência católica à pobreza, o português, nos trópicos, fez-se outro. Na definição inspirada de Vianna Moog: "Ao forte e exuberante português da Idade Média e das Descobertas sucedeu o outro, mulhereiro, cobiçoso, guloso, onzenário, inventor de receitas de doces, barroco, presa de angústias e daquela tristeza apagada e vil em que já o surpreendia Camões no fim do século XVI".

-----Do caldeirão de diferenças e semelhanças nasceram ordens políticas e econômicas tão diferentes entre o norte e o sul. Mas por quê? As instituições decorrem das condições materiais de cada lugar ou são moldadas pelo interesse do colonizador? Em 2002, os economistas Stanley Engerman e Kenneth Sokoloff mostraram como as instituições refletem as condições materiais. Por exemplo: onde havia terra e clima adequados ao cultivo de cana-de-açúcar o europeu recorreu à escravidão porque precisava de braços para plantar e colher. A Geórgia, no sul dos Estados Unidos, é um caso lapidar. A colônia foi fundada por James Oglethorpe, um reformista social com uma boca feminina e um narigão de corvo, que fez questão de proibir, por escrito, a escravidão. Mas a pressão dos fazendeiros, ávidos pelo braço do negro, levou à legalização do trabalho escravo em apenas uma geração. Eis por que os ingleses eram humanitários no norte e escravocratas no sul dos Estados Unidos, em Barbados e na Jamaica. Na América espanhola, as instituições também foram assumindo formas distintas conforme as condições locais. No Peru, populoso e rico, eram fechadas, controladas pelo colonizador. Na Argentina e no Chile, então mais pobres e menos populosos, o controle colonial era mais frouxo, o que acabou encorajando maior participação comunitária na vida pública.

-----O inglês James Robinson, professor de Harvard, acredita na importância das instituições, mas não as considera resultado direto das condições materiais. Acha que são guiadas pelo interesse do colonizador. Robinson diz que nas colônias ricas e populosas não interessava ao europeu dar direitos civis e econômicos à maioria da população. Foi o que ocorreu na maior parte da América Latina. Já nas regiões mais pobres e com baixa densidade populacional, onde os próprios europeus constituíam a maioria, era interessante ter mais liberdade e proteger direitos de propriedade. Foi o que aconteceu no norte dos Estados Unidos e no Canadá. "As instituições econômicas nas diversas colônias foram moldadas pelos europeus de modo a beneficiar a eles mesmos", diz Robinson. Sejam as instituições produto do meio ou do homem, ou um pouco de cada coisa, é certo que o atraso da América Latina resulta de sua riqueza inicial. É o paradoxo da abundância. A fartura de recursos naturais no raiar da colonização explica as instituições deformadas: exclusivistas, autoritárias, concentradoras. A relativa pobreza do norte da América inglesa, onde a agricultura não convidava à escravidão e a propriedade privada da terra foi multiplicada, é a razão de suas instituições mais funcionais: homogêneas, igualitárias, democráticas.

-----A missão da América ibérica é livrar-se da herança institucional do passado colonial que emperra o crescimento, a radicalização da democracia e a superação da desigualdade aguda. Mas a tarefa é politicamente mais complicada do que parece. As instituições podem ser eliminadas do papel com uma canetada. Outra coisa é desentranhá-las da vida cotidiana. Os Estados Unidos fizeram uma guerra civil para abolir a escravidão, brutal ruptura da ordem política, mas a herança desse período se perpetuou por décadas na segregação racial, até Martin Luther King liderar a conquista da igualdade nos anos 60. Mesmo assim, a tensão racial chegou até os dias de hoje. No Brasil, a elitização do poder político começou na colônia e, apesar da independência, do fim da escravatura, da Revolução de 30, da industrialização, da redução do analfabetismo, da universalização do voto, apesar de tudo, ela ainda está aí. No Nordeste, onde o Brasil nasceu e onde é ainda mais arcaico, o coronelismo, versão atualizada do mando escravocrata, resiste à extinção. O historiador José Murilo de Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, encontra as raízes do atraso brasileiro na ausência de rupturas – não por acaso, na maior delas, a Revolução de 30, nasceu o Brasil moderno. A falta de rupturas, diz o historiador, é um problema porque consome o tempo das reformas.

-----Os estudiosos Adam Przeworski e Carolina Curvale, da Universidade de Nova York, calcularam o custo anual de adiamento da independência (165 dólares per capita) e de tumulto posterior (70 dólares), assim considerado o período decorrido entre a independência e o fim do mandato do primeiro dirigente eleito. No Brasil, o custo foi de 12.200 dólares. Ou seja: se o Brasil tivesse ficado independente mais cedo e politicamente estável em seguida, a renda per capita do brasileiro seria hoje 12.200 dólares maior – ou cerca de 20.000 dólares, curiosamente igual à de Portugal. Num país em que Getúlio Vargas virou líder do operariado sindicalizado, e o operário sindicalizado Luiz Inácio Lula da Silva virou líder do lumpesinato, o pendor para as instituições enjambradas é uma dificuldade adicional. Eliminá-las requer a extinção das condições que as criaram. No mundo das reformas, já se tentou até transplantar instituições de um país para outro, como fez a Inglaterra na Índia, mas não funcionou. Por diversas razões, inclusive resistência cultural, a Índia não se deixou impregnar pela ordem inglesa. Eis um favor decisivo: instituições, para produzir efeito, precisam ser absorvidas. É um lembrete útil para a casta de consultores que, regiamente remunerados, se entregam a papagaiar receitas institucionais como se sua aplicação fosse tão natural e inevitável como a lei da gravidade. Sem a intermediação da política, elas não desabrocham.

-----Entre os economistas, sociólogos e historiadores, há controvérsia sobre os fatores decisivos para o desenvolvimento, mas existe o consenso de que, sem educação, não há avanço. E, de novo, a educação é uma construção política. Em 1850, os Estados Unidos já tinham a população mais educada do planeta. No Caribe inglês, as primeiras escolas só foram abertas em 1870, o que explica seu atraso. Em 1950, a renda per capita da Coreia do Sul correspondia a 8% da americana. Em 2000, era metade. Nenhum país latino-americano avançou tanto no último meio século. Nenhum fez, nem de longe, o investimento sul-coreano em educação. No Brasil, a educação, escassa e precária, fincou raízes cedo, sob a influência da atrasada família real portuguesa, que não realizou a reforma religiosa do catolicismo, nem a revolução econômica do capitalismo, nem a revolução científica. Isso se refletiu na falta de democracia, na falta de capitalismo e, é claro, na educação do povo, desastrosa na colônia, no império e nos primeiros 100 anos da República. Dom Pedro II talvez tenha sido o dirigente mais culto da história do Brasil. Tinha curiosidade científica, interessava-se por tecnologia, falava espanhol, italiano, francês, inglês, alemão e hebreu e dizia que, se não fosse imperador, queria ter sido professor. Quando anotou em seu diário, no dia 5 de junho de 1876, que o trem levara 84 horas e 26 minutos de Nova York a São Francisco, talvez não tivesse clareza de que aquilo era fruto da conjunção de democracia e capitalismo na América, mas intuía que o Brasil do lombo de mula já estava em busca do tempo perdido.

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O artigo original é de André Petry, publicado pela "Veja" de 16 de Setembro. Está editado pelo Freeman.

segunda-feira, setembro 14, 2009

Independência de quem?




Com sutil razão, passou despercebida pela maioria dos brasileiros, na semana passada, a comemoração do 187ª ano da Independência do Brasil.

A razão é simples: trocamos a metrópole, Portugal, por Brasília e o imperador Pedro por imperadores temporários, mas aspirantes do poder absoluto...

Uma independência verdadeira pressupoe uma mudança de rumo, de atitudes, de hábitos, principalmente do comportamento do Estado. Seria de se esperar uma nova mentalidade dos governantes e dos políticos em geral - como ocorreu, por exemplo, nos EUA, onde a independência representou não apenas uma ruptura político-administrativa com a Inglaterra, mas a criação de um novo e criativo regime de governo, que daria prosperidade ao país e ao seu povo.

Aqui não houve nada parecido. O Império guardou para o futuro todo o conteúdo cartorial, burocrático, paternalista e paralisante do governo colonial. O Brasil deixou de ser colonizado por Portugal e passou a ser colonizado por seus governos...

E tivemos de tudo nesses 187 anos. Conspirações, golpes, tentativas de golpe, fraudes eleitorais, suicídio de frustrado ditador, regimes autoritários, etc.,etc..

Em resumo, uma péssima formação do regime do País, deformado pelo caráter menor dos que, por principio, deveriam zelar pelas mudanças que aprimorassem as insituições e beneficiassem a Nação.

Em primeiro lugar, apoderaram-se e expandiram o patrimonialismo, antes restrito ao imperador. Não satisfeitos, criaram e passaram a guiar-se pela máxima do: "tudo para os amigos e para os não amigos a Lei"; pela intencional complicação burocrática das leis e regulamentos, mesmo para as coisas mais simples, com o propósito de manterem os “súditos” na dependência dos favores do Poder, de qualquer poder, mesmo o do guarda da esquina...

Para manterem as mordomias, os roubos e os desperdícios, criaram a maior carga fiscal existente entre países semelhantes, mas com um pequeno detalhe: nãoqualquer contrapartida decente pelos impostos pagos... E, um Judiciário que anda a passos de cágado, de olho fixo apenas nos autos e cego para a Justiça; por partidos sem programas e sem projetos, aos quais ninguém segue e, por um Congresso que opera sempre dividido entre os sabujos do chefe e os bufões, mas nunca em função dos interesses da Nação e da sociedade.

Tudo isso foi herdado, alimentado e mantido. Nada foi extirpado pela Independência, nem pela República. Não houve nem independência de ideais!

Dos vícios e desvios, o mais cediço é o do "paizão": O GOVERNO.

Qualquer iniciativa, negócio, empreendimento, ideia, por mais importante que seja para os destinos do País, não prospera nem anda um milímetro, sem o beneplácito do imperador do momento, e se acontece, é sempre graças a um intermediário cujos "honorários" são tanto mais elevados quanto mais elevado ele se situe na corte ou nas boas graças do monarca.

perceberam que toda grande empresa privada nacional ou estrangeira que queira se instalar, ou que planeje algum novo grande investimento, a primeira coisa que faz é mandar o seu alto executivo para uma audiência com Sua Excelência o Presidente da República Federativa do Brasil?

Agora, você viu algum grande empresário brasileiro, que tenha negócios nos EUA, precisar visitar a Casa Branca e beijar a mão do presidente americano? É porque ali, para fazer negócios, basta seguir as normas e cumprir a lei. O rapapé não faz parte dos usos e costumes dos americanos, nem de outros povos razoavelmente civilizados...

Aqui o rapapé é imprescindível. Sem ele, sem o beija-mão e, na maior parte das vezes, sem o "engraxa" mãos, o negócio não sai, mesmo que perfeitamente dentro das normas e da lei... Eis toda a diferença entre uma democracia verdadeira e outra, que apesar do nome, das instituições e de toda liturgia formal, não funciona. É um enorme e caro engodo. É uma farsa para uma platéia de analfabetos que se contentam com as migalhas das mesas da corte. A não ser, obviamente, os amigos do rei...

Segundo o relatório Doing Business - 2010, do Banco Mundial, divulgado na semana passada, sobre 183 países, no quesito facilidade de criar negócios o Brasil está no 129º lugar, atrás da Colômbia, do Chile, do México, do Peru, do Panamá, de El Salvador, do Uruguai, da Argentina, da Costa Rica e... do Paraguai - para citar apenas nossos vizinhos.

E o Banco Mundial sabe bem o que diz, pois participa de negócios e projetos no mundo inteiro. Há alguns anos perguntei a um diretor do Banco Mundial por que obras públicas no Brasil eram mais caras do que na média até dos países da América Latina. Ele sorriu e disse: "São os 30%...", pedindo para não ser citado, obviamente. Outros dados do estudo: para sustentar o Fisco o empreendedor brasileiro médio trabalha 2.600 horas por ano. A média, na América Latina, é 563 horas. Número de dias necessários para abrir um negócio no Brasil: 120, contra 45,5 dias em média nos outros países da América Latina.

Tudo isso é herança da mentalidade colonial brasileira, que a Independência não mudou e que a República reforçou. E, cujos representantes, no Congresso e nos partidos, procuram preservar a todo custo, como mostrou, mais uma vez recentemente, a renhida tropa de choque política comandada pela dupla Sarney-Renan, com a prestimosa colaboração de Aloizio Mercadante, no episódio da Comissão de Ética (?).

E por que o empenho todo? Pelos bigodes do senador do Maranhão, aliás, Amapá? Nada disso. O valor daqueles fios não é o de antigamente. Foi para continuar governando o governo, para que a independência continue sendo apenas uma proclamação sem conteúdo, para que a recém-iniciada modernização do País se dilua e não contamine demais os carcomidos hábitos políticos. Tudo avalizado por um Lula que desistiu de "mudar tudo isso que está ", abraçou o "poder-pelo-poder", deu meia-volta volver e empreendeu marcha batida em direção ao que a República Velha tinha de mais velho.



A ilustração é de Jacek Yerka.

O artigo original A independência que ainda nos falta” é do jornalista Marco Antonio Rocha - está significativamente alterado pelo Freeman.