domingo, setembro 19, 2010

Tapuiassauros



Tapuiassauro é o nome provisório dado ao dinossauro brasileiro recentemente descoberto em Minas Gerais, cujos fósseis indicam que ele viveu há 110 milhões de anos.
Numa analogia com o Brasil político, bem que poderia ser o apelido do Estado brasileiro, o Leviatã à moda da casa, o monstro do poder público que Hobbes descreveu em 1615 e que por aquí ganhou uma face doce e benevolente, apurada ao longo dos séculos, sob diferentes governos, porém todos oligárquicos.
Quando se lê mais uma notícia do balcão de negócios montado na Casa Civil pela ministra Erenice Guerra, amiga, braço direito e sucessora da candidata Dilma Rousseff, o que choca não é a novidade, mas a maneira como os fatos parecem antigos, familiares, de longínquas eras. A diferença é que os fósseis não são de um animal extinto. É o comportamento político atual, presente desde sempre na vida dos tapuiassauros que dominam o Estado brasileiro.

Durante décadas ouvimos de gente supostamente de "esquerda" que o PT ia romper com a apropriação da máquina pública por grupelhos particulares. Mas a realidade é que durante os oito anos do governo Lula não vimos nada senão isso. Outro dia li um desses articulistas que juravam que o socialismo democrático seria a salvação do Brasil, em oposição ao suposto neoliberalismo dos governos tucanos, qualificando Dilma de "esquerda" e Serra de "direita". A infantilidade e a aberração da catalogação, mostra que certas espécies não evoluem mesmo, apesar de Darwin. E fica demonstrado o fato de que o PT “ético” sempre foi só uma encenação de campanha, a realidade está aí.

A violação de sigilos fiscais por servidores da Receita, aloprados ou comandados, não é outro caso: é o mesmo. Erenice expandiu seus tentáculos familiares - filho, irmão, amigos, etc. - para todas as partes, usando expedientes vezeiros. Sua noção de liberdades individuais, da separação entre Estado e Sociedade, simplesmente não existe, ou então só existe para os inimigos. Violar um sigilo é ter a mesma desconsideração pelo fato de que as autoridades foram eleitas por nós e devem nos. servir, não o contrário. Do caseiro Francenildo aos milionários fora dos esquemas, todos estão à mercê da facilidade com que ocupantes da máquina oficial xeretam suas vidas. Eles simplesmente acham que o Estado tem todo o direito, e não por acaso quem criou o Gabinete Civil foi Getúlio Vargas e quem o consagrou foi Ernesto Geisel.
As comparações com Mussolini e outras frases tucanas só atrapalham. Primeiro, porque a população não vê o PSDB como grande exceção à regra, tanto é que os escândalos não mudaram as pesquisas eleitorais. Segundo, porque não se trata de um fascismo institucional, e sim da velha e boa malandragem brasileira. Obviamente, apesar das justificativas de intelectuais e artistas, essa malandragem é antidemocrática. Volto a dizer que o governo Lula lembra os do regime militar, principalmente em sua retórica do "Brasil Grande" e "ame-o ou deixe-o" e em seu gosto por estatais faraônicas.

São sinais de um regime autoritário, de um governo que costumeiramente viola regras da democracia. Lula só é popular porque a economia está melhor.
Acontece que o problema é cultural; é da leitura que se tem feito da atualidade política, na maioria dos casos guiada por uma desonestidade intelectual persistente. Se alguém critica o PT por essa sequência acachapante de rupturas com a ética (único tipo, de ruptura que fez, já que, de resto, só seguiu os acertos e os desacertos do governo anterior), imediatamente se ouve que "todos roubam" e é xingado de "tucano" e recebe uma lista dos números comparativos da economia (até mesmo o número de pontos da Bolsa de Valores, que eles antes diziam ser uma ciranda financeira elitista). O articulista de página 2 que citei, por sinal, acha que Lula fez "uma inclusão (sic) inédita na história", o que é mentira (até Getúlio, JK e os militares aumentaram mais a renda média do trabalhador) e esconde a base de boa parcela dessa melhora (o Plano Real, as privatizações e os programas sociais que antes os petistas tanto criticaram). E nada mais desonesto do que brandir estatísticas para desculpar a falta de ética, pois ética não se mede em gráficos.

Acho que nem o PSDB e muito menos PT mudaram o modo brasileiro de exercer o poder, como deveriam ter mudado. Note que nesse caso Erenice não havia partidos "aliados" para dividir â conta do mensalão, nem exemplos semelhantes na oposição para anular o efeito; eis o motivo por que ela teve de ser demitida. Note também a postura da futura presidente, Dilma: "Onde está a prova do meu envolvimento?", pergunta na célebre linha consagrada por Lula, "não vi e não sei"; ninguém disse haver prova, então não entendo a necessidade da candidata de rebater o que não foi dito. Se o governo Lula aprimorou as políticas econômica e social do governo FHC, aprimorou também os caminhos da corrupção e da impunidade. Pegou o dragão estatal e lhe deu nova vida, com os mesmos métodos do loteamento político e das empreitas viciadas, só que reforçados pelo vale-tudo das declarações e pela militância das ocupações.

Outra prova indubitável de desonestidade intelectual é a dos que dizem que essas notícias só estouram em época de eleição, ou seja, não merecem crédito porque têm interesse político, movido , pela "grande imprensa" a serviço da "zelite". Bem, a zelite está felicíssima com o governo Lula, tanto é que as pesquisas dizem que Dilma ganha em todas as classes, regiões e instruções (com diferenças de porcentagem, mas ganha).
Outras dezenas de Erenices têm vindo à tona em anos não eleitorais, sem que esse comportamento mude, o que por sinal é um escárnio e, ao mesmo tempo, uma vergonha para as outras instituições da república que deveriam zelar por condutas minimamente aceitáveis dos governantes. É a triste prova que os tapuiassauros estão em TODAS as instituições públicas e que as presas somos nós.


O artigo original é de Daniel Pizza. Está editado e modificado pelo Freeman.