terça-feira, dezembro 18, 2007

A democracia no conceito de Lula.



Como é possível levar a sério um presidente da república que tem a coragem de fazer a seguinte afirmação: “Podem criticar o Chávez por qualquer outra coisa. Inventem uma coisa para criticar. Agora, por falta de democracia na Venezuela, não é”. Lula pronunciou essas palavras após a aprovação, pela Assembléia Nacional da Venezuela, do texto de reforma constitucional que foi sabiamente derrotado pelo povo, no último referendo.

Para evitarmos especulações desnecessárias, conheçamos um pouco o documento “democrático” que inspirou o nosso presidente a fazer tão sábia afirmação.
E, tirem suas próprias conclusões...

O texto, diferentemente, do que muitos brasileiros pensam, não se limita a estabelecer a possibilidade de reeleição ilimitada do chefe de Estado. Ele reinventa o Estado venezuelano pela transformação do presidente na fonte exclusiva da lei.

Senão vejamos:

  1. Os artigos 337, 338 e 339 permitem que o presidente declare estado de exceção, por tempo ilimitado, sem escrutínio da Corte Suprema e com a revogação do direito à informação. Esses artigos contrariam a letra da Convenção da ONU sobre Direitos Civis e Políticos, em vigor desde 1976, e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da OEA, em vigor desde 1978.

  2. A Federação converte-se em obra do arbítrio presidencial. O artigo 156 permite ao presidente, à sua vontade, criar ou eliminar Estados, municípios e territórios federais. Pelo artigo 164, retira-se dos Estados o direito de organizar a divisão político-administrativa municipal. Adicionalmente, no artigo 11 se concede ao presidente o direito irrestrito de criar “regiões estratégicas de defesa” e designar autoridades especiais para administrá-las.

  3. A vontade do povo deixa de ser definida pelo voto popular. O artigo 16 estabelece a comuna (cidade) como “unidade política primária” e o artigo 136 cria o “poder popular”, que “não nasce de sufrágio ou eleição qualquer, mas da presença dos grupos humanos organizados como base da população”, em conselhos comunais de trabalhadores, camponeses, estudantes, mulheres, jovens ou idosos. Tais conselhos ganham reconhecimento por decretos presidenciais de constituição de comunas e são financiados por uma reserva orçamentária fixa.

  4. O Poder Judiciário é extirpado de sua independência. De acordo com os artigos 264 e 265, uma maioria simples da Assembléia Nacional nomeia e remove, a qualquer momento, os juízes da Corte Suprema. Os órgãos de “poder popular” participam da indicação de candidatos a juiz. O mesmo sistema, de acordo com o artigo 295, é aplicado ao Conselho Nacional Eleitoral, o que assegura à atual maioria legislativa o controle sobre as regras e a fiscalização das eleições.

  5. A política externa chavista é consagrada como preceito constitucional. Pelo artigo 153, a Venezuela deve unificar a América Latina numa Pátria Grande ou, nas palavras de Simón Bolívar, “uma Nação de Repúblicas”. As Forças Armadas são definidas como “antiimperialistas” e renomeadas, pelo artigo 328, como “Força Armada Bolivariana”. Os reservistas passam a constituir uma “Milícia Nacional Bolivariana”. Remove-se a interdição de participação dos militares em atividades políticas, conservando-se apenas a de figurarem como ativistas de partidos políticos.

O título Duce, que significa “líder”, em italiano, foi usado pela primeira vez pelo rei Vittorio Emanuelle III em 1915, em seguida pelo intelectual e mentor de Mussolini, Gabriele D’Annunzio, durante sua efêmera regência autoproclamada de Carnaro, no Fiume, em 1920, e depois pelo próprio Mussolini, a partir da instalação da ditadura, em 1925. A reforma constitucional venezuelana representa a entrega do título de Duce a Hugo Chávez, que, como Mussolini, fala num “novo socialismo”.
O dístico mussolinista, “tudo no Estado, coisa nenhuma contra o Estado, nada fora do Estado”, condensa o sentido da nova Constituição chavista, que identifica o Estado à vontade do caudilho. Em campanha para o referendo, Chávez empregou, inúmeras vezes, o rótulo de “traidor” para se referir aos defensores do voto no “não”, inclusive aos aliados de ontem, que sustentaram seu poder legítimo na hora do golpe de 2002. É que o Duce é a Pátria e divergir do Duce equivale a trair a Pátria.

Segundo Lula, “democracia é assim: a gente submete aquilo que acredita, o povo decide e a gente acata o resultado”. Se conhecesse um pouco de História, o nosso presidente, tragicamente, descreveria nesses termos a elevação de Napoleão Bonaparte a cônsul, cônsul vitalício e imperador, e a nomeação de Hitler como Führer. Nesses casos clássicos, como em tantos outros, a democracia degradou-se em tirania no líquido de sucessivos referendos explorados pelos caudilhos.

Democracia não é um conceito vago, inexplorado. Tem história, tem princípios, e o seu sentido está impresso na experiência das sociedades, no texto das leis. É imperdoavel que a maioria dos nossos políticos não tenham a MENOR idéia do que ela realmente signifique! E o dano da ignorância (ou má fé) se espalha na vida da nação.

O Protocolo de Ushuaia, firmado pelas nações do Mercosul, assim como por Chile e Bolívia, abre com o artigo que diz: “A plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos processos de integração entre os Estados Partes”.
Mas Lula, obviamente, não está sozinho, vejam como agiram os ilustrados membros da corte presidencial, desta nobre república sindicalista bananeira: o Congresso Nacional, que tinha a obrigação de fazer cumprir o Protocolo de Ushuaia, que é lei, rejeitando a pretensão venezuelana, acabou aprovando o seu ingresso. A chancelaria brasileira circundou o obstáculo do Protocolo de Ushuaia invocando, meramente, interesses de integração comercial, passando por cima de um princípio básico firmado pelos próprios fundadores do Mercosul, Brasil inclusive.

Ainda bem que Lula disse que não é preciso instrução para governar um país, basta intuição...


artigo original de Demétrio Magnoli – editado pelo Freeman
foto: os dois mais perfeitos idiotas latino-americanos.

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