domingo, junho 18, 2006

O inimigo dentro de casa


Tenho tentado, de várias formas, manter uma postura positiva enquanto observo como as instituições políticas e seus personagens vêm se deteriorando no Brasil. Mas confesso não tem sido fácil.
Escuto, diariamente, as mais variadas pessoas lamentarem as notícias de corrupção, de criminalidade, a ausência total de ética, a impunidade reinante, o esbulho tributário, o massacre burocrático e assim por diante. Geralmente acabo contribuindo com a minha dose pessoal de queixas, tentando conferir alguma racionalidade à chorumela, procurando encontrar uma lógica para as nossas mazelas e contribuir com alguma proposta para que se vislumbre uma solução.
Mas temo que, ao recusar a indefectível frase que costuma suceder a esses lamentos – “este país não tem mais jeito” – eu acabe parecendo ingênuo ou sonhador, tal o volume do mal- estar que se apodera de qualquer pessoa, medianamente sensata, vivenciando o cotidiano brasileiro.

A semana passada, diante de nova notícia de um triste episódio, não pude escapar a mais uma lamentável analogia com a política. Havia acompanhado, com náusea, as notícias do caso da garota que planejou e ajudou a matar os pais a pauladas. As discussões jurídicas são bizantinas: prorrogar ou não a prisão preventiva; prisão domiciliar; guarda da herança, etc.. A maior dúvida jurídica parecia se referir a insistência de parte dos advogados para que sejam separados os julgamentos. Se dermos uma leve espanada nas firulas é claro que a realidade é apenas uma: trata-se de um crime monstruoso, o assassinato de duas pessoas dormindo, idealizado pela perversidade da própria filha e por motivação óbvia: sexo, drogas e deformação moral. Tudo mais é conversa fiada de advogados.

No mesmo noticiário aparecem as cenas da invasão do Congresso Nacional por uma horda, aparentemente alucinada, mas certamente dirigida, com paus e pedras destruindo tudo que vêem pelo caminho. Trata-se, obviamente, de um “movimento social”.
Na verdade, o que choca na cena é vê-la ao vivo e em cores, porque episódios como esse têm ocorrido neste Brasil de MSTs em quantidade crescente. Nós pagamos por eles, querendo ou não! Esses desordeiros impunes vêm sendo, de longa data, cevados com verbas públicas! O que podemos esperar quando o partido do governo e as lideranças dos “movimentos” se confundem e se sobrepõem?

A propósito, muita gente pensa que foi uma gafe cometida porque comprometeria a imagem do governo e do seu partido num momento inoportuno. Eu também gostaria que fosse, mas infelizmente está mais para uma técnica de intimidação do que qualquer outra coisa. Logo ouviremos dizer que “somente Lulla” é capaz de controlar esse pessoal de ânimo mais exaltado.

Voltando a analogia, a triste história da Justiça no Brasil nos indica que, por mais banais ou horrorosos que sejam, o que passa logo a prevalecer sobre os crimes, não é a sua essência, a sua veracidade. São, na esfera pública, além do estrito corporativismo entre os poderes e a troca deslavada de favores, os ritos, os formalismos processuais, sempre embebidos no labirinto das condescendências, das procrastinações que, ao fim, sabemos aonde vão dar: em nada! Ou, no máximo, numa punição incrivelmente modesta para o fato. Neste país, feito para os réus, para os contraventores da lei basta ter um advogado esperto e dinheiro para pagá-los. O que temos, na verdade, é um país onde crime e castigo guardam uma relação apenas acidental, o que leva, obviamente, os criminosos a se tornarem cada vez mais auto-confiantes e a maioria dos cidadãos desnorteados e ao desalento.

Ora, que uma filha pervertida e dois canalhas cometam um assassinato com olhos na herança é uma coisa horrível, mas possível de entender em razão do próprio qualificativo dos autores. O que me assusta é que o nosso sistema jurídico, além de começar a julgar o caso somente três anos e meio depois, permita que os advogados possam adiá-lo simplesmente ao retirem-se do recinto. Isso é um acinte e uma barbaridade contra a sociedade tão grande quanto o crime cometido.
Da mesma forma, pode ser difícil cobrar bom senso de analfabetos e sociopatas que, aliciados por qualquer bolsa-esmola são levados a vandalizar propriedades públicas e privadas. Mas que os responsáveis pelas nossas instituições se omitam escandalosamente e que gente supostamente normal vá se acomodando sem reação a tais coisas, achando maneiras de fingir que elas não têm a gravidade que têm, representa a verdadeira destruição.

Assim como os pais assassinados, as nossas instituições também estão sendo assassinadas por terem o inimigo dentro de casa! Os ocupantes dos três poderes da República, com raras exceções, são os inimigos da República!
O que de fato está matando o País é a destruição do caráter! Estamos nos tornando (sendo otimista concedo um gerúndio) uma nação de homens públicos pervertidos e povo desfibrado. Uns pela canalhice e pela cartilha ideológica; outros pela omissão, que se deixam iludir com encenações bobocas e declarações unilaterais de paz; que não expele os cínicos e os caras-de-pau das funções públicas através das quais nos humilham e nos servilizam. A certeza da impunidade que traspassa desde o menor infrator até o próprio apedeuta-mór, que vive rindo à toa confiante nas pesquisas, é um tapa na cara de quem ainda preserva princípios básicos de respeito e decência.
Estou entre os que não acreditam que as pesquisas anunciadas se confirmem, mas se isso acontecer, teremos perdido, coletivamente, a ambição de civilidade e o nosso caráter.

O artigo original é de João Nemo, publicado pelo Mídia Sem Máscara, sob o título: " Matando o País a pauladas". Foi editado significativamente por Freeman.